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quinta-feira, 2 de fevereiro de 2012

Reflexões sobre a “Nona Sinfonia” de Bruckner



Günter Wand*

O enfrentamento das forças rítmicas elementares dos intervalos temporais pares e ímpares atravessa à maneira de um fio condutor toda a produção sinfônica de Anton Bruckner. Desempenha um papel importante na invenção dos temas, no seio dos quais se sucedem duínas e tercinas de mesma duração, mas mais ainda enquanto contraponto rítmico quando as forças, que por sua natureza se afastam umas das outras ao desenrolar-se, são canalizadas, como por encanto, no mesmo intervalo de tempo. É notadamente a esse dualismo rítmico de todo próprio de Bruckner que o pujante movimento de pêndulo de sua música sinfônica deve seu impulso e seu violento ardor. Aqui se revelam teores que ultrapassam de longe o puro domínio do ritmo musical. É como se esse dualismo tivesse valor de símbolo do que é inconciliável na natureza humana e da aspiração a vencer essa incompatibilidade.
O senso infalível de Bruckner para a dependência entre tempo e espaço é a argamassa que faz manter-se a rocha primitiva de que se erguem suas catedrais sinfônicas. A arquitetura de sua música resulta, com efeito, menos do desenvolvimento do material temático, como é, por exemplo, o caso na música sinfônica clássica, que do equilíbrio tanto sonoro e dinâmico quanto espacial e temporal dos blocos temáticos que se defrontam. Se a confrontação de valores rítmicos pares e ímpares e a tentativa de fundi-los no mesmo intervalo de tempo conduz a explosões e sacudidelas que fazem pensar em erupções vulcânicas e até em fenômenos cósmicos, o fato de dobrar e de triplicar os valores de notas, de passar diretamente, por exemplo, de tercinas de colcheias a tercinas de semínimas e de mínimas, produz menos a impressão de desaceleração do tempo que a de alargamento do espaço (final da Quarta Sinfonia).
Há na música de Bruckner períodos em que as leis de tensão e distensão parecem ser abolidas. Diversos impulsos rítmicos de mesma natureza se superpõem, em parte num duplo intervalo temporal. Resulta disso um fenômeno singular: a forma animada pelos sons produz o efeito de estar estático, de maneira comparável à imagem das estrelas no firmamento noturno, as quais descrevem sua trajetória mas parecem imóveis. É tão somente por momentos que a música de Bruckner mergulha nessas dimensões, como, por exemplo, no “desenvolvimento” do primeiro movimento da Nona, mas já também no stretto marcado ppp no seio do final fugado da Quinta.
Em tudo isso, jamais se tem a impressão de que tais efeitos de energias rítmicas sejam fabricados ou calculados, ou de que se trate de marcas de um refinamento composicional particular (como, por exemplo, quando no Quarteto para Oboé de Mozart o oboé prossegue sozinho em seu caminho de 4/4 enquanto as cordas tocam no compasso de 6/8). Não, a força imperiosa dessas inspirações parece antes pertencer à natureza das coisas, em tudo conforme à forma e à beleza naturais de temas únicos em seu gênero.
Mais pronunciada em comparação com as sinfonias anteriores, a rudeza da imagem sonora da Nona, a qual produz por vezes o efeito de um distanciamento consciente, decorre da extrema consequência que preside a conduta polifônica das vozes, a qual irrita muitos ouvidos à primeira audição. Ela é expressão de um isolamento do mundo, de uma profunda veracidade que, após tantas visões extáticas da glória do outro mundo, está igualmente em condição de formular a mais vertiginosa dissonância. Esse grito terrível, no qual parece ressoar até o fim dos tempos o lamento da humanidade a chorar o paraíso perdido, não pode por si mesmo encontrar solução nem redenção. Vem em seguida a ele o silêncio, e depois o abandono à fé, que é segurança e refúgio. A sonoridade parece desprender-se da matéria, e doravante o pulso da música bate até a transfiguração final na certeza do NON CONFUNDAR IN ÆTERNUM.        


* Maestro alemão (1912-2002), um dos dois maiores intérpretes do Bruckner sinfônico (o outro é o austríaco Eugen Jochum, que, todavia, é sem dúvida o principal intérprete da música religiosa do compositor, enquanto Wand, pelo que sei, nem sequer a gravou). – Esta tradução se fez de texto para a caixa RCA das Sinfonias 1-9 de Bruckner por Wand (com a Kölner Rundfunk-Sinfonie-Orchester).