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terça-feira, 15 de janeiro de 2013

“Pange, lingua”: (parte do) poema de Santo Tomás de Aquino em música de Anton Bruckner

  

Pange, língua, gloriosi
Canta, ó língua, o mistério
corporis mysterium,
deste Corpo glorioso,
sanguinisque pretiosi
e do Sangue precioso
quem in mundi pretium,
derramado sobre o mundo,
fructus ventris generosi,
fruto de ventre fecundo,
rex effudit gentium.
Rei de todas as nações.
Amen.

Amém.

“Bruckner era ‘demasiado’ católico para os moldes do Romantismo musical”

Anton Bruckner

C. N.

 

Escreveu-nos Arai Daniele, como sempre muito gentilmente, após escutar o Requiem de Bruckner (vide O “Requiem em Ré menor” de Anton Bruckner):

“Nós podemos compreender, já no Requiem, porque Bruckner foi pela sua música isolado e tantas vezes maltratado: no seu baixo contínuo transparece a hora de tristeza, mas igualmente da glória do Céu. Era ainda muito «católico» para os novos moldes do Romantismo musical!

Precisas palavras. Para que se confirmem – não bastasse a própria e sublime música do compositor austríaco –, leiamos o que diz Alfred Einstein,[1] um dos principais historiadores, intérpretes e admiradores do Romantismo musical:

“[Bruckner] não se enquadra em seu tempo senão na medida em que sua arte é inconcebível sem o exemplo dos anteriores Beethoven e sobretudo Schubert e sem a adoção que este fez da grande orquestra sinfônica do século XIX. Quanto ao mais, sua obra situa-se – em oposição à de Brahms, com seu caráter póstumo – quase fora do tempo. Ele [Bruckner] retoma com toda a ingenuidade a grande forma quadripartida da sinfonia beethoveniana e da Sinfonia em Dó maior de Schubert, no quadro da qual inscreve por seu turno um conteúdo inteiramente pessoal e puramente musical, isento de todo ‘programa’ [...]. Na verdade, sua música sinfônica não tem nada que ver com tais puerilidades ou trivialidades [ou seja, com nenhum conteúdo programático]. Ela é saída da mesma fonte que sua música sacra, isto é, de profunda religiosidade; seus movimentos lentos, tal como seus primeiros movimentos e seus finali, encerram sempre o caráter de um colóquio com Deus.[2] As correspondências temáticas e simbólicas de suas sinfonias com suas missas e seu Te Deum são aliás manifestas. Ademais, entre todos esses primeiros ou últimos movimentos, não se encontra um só Presto, e nem sequer um [autêntico] Allegro. Nenhuma paixão. Seu andamento é sempre solene, como o de uma procissão, e o movimento não se afasta jamais de sua calma; mas esse movimento não é o de uma emoção pessoal.[3] [A música de Bruckner é] de suprema pureza e inscreve-se [, sim, de algum modo,] no quadro tradicional, mas em relação com um mistério perceptível a nossos sentidos pela irradiação sonora das cordas e sobretudo dos sopros; plena de pujantes crescendi que geralmente terminam numa apoteose quase barroca de todos os metais;[4] monumental e ao mesmo tempo terna em seus menores detalhes harmônicos e melódicos.[5] [A sinfonia bruckneriana] é arte intemporal, vigorosa e monumental [...]”.

Quanto a nós, após um necessário excurso pelo que se pode e deve aproveitar do Romantismo musical, confessamos: é com certo alívio e grande gosto que voltamos ao leito da música de Anton Bruckner, efetivamente intemporal e sempre boa simpliciter.    




[1] Em La musique romantique, tradução do inglês Jacques Delalande, Paris, Galimard, 1959, pp. 187-188. – Os negritos serão nossos.
[2] Mas também seus Scherzi: sob a aparência de retrato da calorosa paisagem austríaca, pulsa um intenso Gloria.
[3] Que maior diferença pode haver com respeito à música iniciada por Beethoven, sempre egocentrada? – O que porém Alfred Einstein não consegue captar é que, sem deixar de expressar uma emoção religiosa objetiva, toda e qualquer música verdadeiramente católica tampouco deixa de expressar uma emoção individual. Apenas, é uma emoção individual que não se separa da emoção sentida por toda a Igreja, objetiva porque fundada na objetividade suprema e comum da Fé, da Esperança e da Caridade.
[4] Trata-se sempre de um Alleluia.
[5] Como um correlato laico, exatamente, de uma grande Missa solene, episcopal ou papal. 

Como penetrar o “De Institutione Musica” de Boécio


C. N.

Esta preciosidade filosófica pode, à primeira vista, assustar o leitor leigo moderno, e não poucos já nos escreveram dizendo-a impenetrável. Não o é. Naturalmente, sua leitura exigirá certo esforço matemático, até porque boa parte de suas fórmulas Boécio as deixa irresolutas. Para penetrar este mundo, porém, basta antes de tudo sentar-se diante de um piano, onde, obviamente, há teclas pretas e brancas; a cada grupo de duas brancas sucede-se um grupo de três pretas, e vice-versa. Toque-se a tecla branca anterior a um grupo de duas pretas e, depois, a branca anterior ao grupo seguinte de três pretas: ver-se-á então que o som extraído da segunda tecla branca é mais agudo que o da anterior. Pois bem, a diferença de altura musical entre as duas teclas constitui o que se chama intervalo de quarta; e, se agora se toca outra vez aquela primeira tecla branca e depois a tecla branca que se segue à primeira preta do segundo grupo de três pretas, perceber-se-á que a altura musical é maior que a anterior – é o intervalo de quinta. Se se nota, ademais:
a) que dos intervalos anteriores se podem derivar todos os intervalos musicais;
b) que, quando entre duas teclas brancas há uma preta, o intervalo musical entre aquelas é de um tom;
c) e que entre duas brancas consecutivas (sem mediação de uma preta) o intervalo é de um semitom;
ter-se-á penetrado o universo da música e dado um primeiro passo com respeito à obra de Boécio. Para poder enfim penetrá-la, não se necessita, além dessas simples noções musicais, senão de meros rudimentos matemáticos:
• soma, subtração, multiplicação e divisão de números positivos (inteiros e fracionários);
• ordenação de números fracionários.
O mais é esforço intelectual, sempre recompensado pelo repouso na Verdade.

Em tempo: A melhor tradução que conhecemos da obra de Boécio é a de Salvador Villegas Guillén ao espanhol (Anicio Manlio Torquato Severino Boecio, Tratado de música, Madri, Ediciones Clásicas Madrid, 2005).