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segunda-feira, 25 de julho de 2016

Análise das sinfonias de Bruckner - I: As primícias (1)



C. N.

A série de postagens que se inicia aqui será de certo modo parte de um livro que pretendo concluir brevemente. Nesta série, analisar-se-ão uma a uma as obras sinfônicas de Anton Bruckner (Áustria, 1824-1896). Nela não insistirei em que julgo o ciclo de sinfonias de Bruckner a cúspide da música orquestral e sinfônica, e em que ao Austríaco o incluo entre os maiores artistas de todos os tempos. Destes pontos, tratarei a fundo no referido livro; mas já o fiz algo aprofundadamente, ou reproduzi textos de outros que o fazem, em diversos artigos desta página.[1]    
Antes da análise de cada uma das sinfonias brucknerianas – cuja reprodução aqui visa a facilitar a audição destas peças –, porei algumas palavras minhas, à guisa de introdução. Mas as análises mesmas serão traduções das feitas por P.-G. Langevin em seu livro Bruckner (Lausanne, l’âge d’homme, 1977, 384 pp.). Não deixarei todavia de intervir, entre colchetes, sempre que me parecer necessário, a título ou de complementação, ou de discrepância com o autor.
Começamos hoje com a primeira parte das primícias do Bruckner sinfônico.

As primícias (I)

Bruckner, como se dirá mais detidamente no referido livro, retirou-se por muito tempo para o aprendizado tenaz e paciente da composição musical, especialmente a orquestral.[2] Mas este mesmo tempo se divide em duas fases. Na primeira, muito mais longa que a outra, Bruckner faz-se senhor de todas as sutilezas da escritura contrapontística e clássica. A segunda, ao fim da qual “a crisálida enfim se rompe” (Langevin), dura dois anos: é o tempo da metamorfose, sob a batuta de Otto Kitzler (1834-1915), e pelo contato com a música de Wagner (cuja influência sobre Bruckner, como o mostraremos no lugar já referido, se não é desprezível – sobretudo em termos de orquestração e de certos temas –, sempre foi porém demasiado encarecida).[3]
Foi durante essa segunda fase que Bruckner compôs as primícias de sua arte sinfônica: três Marchas; três Peças de Orquestra; uma Abertura; e a Sinfonia de Estudo em fá menor, também conhecida por 00.[4] Cada uma destas obras tem apenas uma redação (se se excetuam as correções de Kitzler à sinfonia).[5] Os manuscritos de todas estas peças de estudo, confiou-os tardiamente Bruckner a um aluno seu, que os legou à cidade de Viena. Quanto à edição, terão destino diverso, que se irá precisando aqui.

1. Três Peças de Orquestra (G. A. 62); três Marchas (G.A. 60, 61, 73)

Estas peças, todas de 1862, aparecem pela primeira vez no segundo volume de inéditos de Goellerich. São, repita-se, a estreia de Bruckner na composição propriamente dita para orquestra: anteriormente, com efeito, não o havia feito senão para acompanhamento de páginas corais, etc. “Aqui”, escreve Langevin, “trata-se da orquestra beethoveniana normal, e Bruckner parece ter tomado por modelo os interlúdios escritos por Kitzler para suas representações teatrais.” Prossegue Langevin:

«A primeira [das Três Peças de Orquestra], Moderato, em mi bemol (36 compassos, C [= 4/4]), é a mais interessante pela ressonância já “bruckneriana” do primeiro tutti (comp. 6), com sua modulação em maior. A segunda, em mi menor (48 compassos, C), é eminentemente schubertiana pela sonhadora melodia do oboé sustentado pelo fagote: até em seu breve crescendo central, tomar-se-ia por algum entreato desconhecido de Rosamunde. [Vejo também aí, todavia, uma semelhança de Bach.] A última, em maior (66 compassos ¾, incluído o da capo), impressiona por seu início veemente e reveste-se da forma de um breve Scherzo com seu Trio: este se distingue pelo acompanhamento sincopado das cordas, o qual já se encontrava no Requiem e voltará a encontrar-se no nosso músico.
A estas peças associa-se geralmente a Marcha em ré menor, G. A. 61, imediatamente anterior, e que assume igualmente uma forma tripartite, nitidamente mais desenvolvida. De cor local muito acusada [ou seja, a cor austríaca ou vienense, quase sempre de algum modo presente na música bruckneriana], segue-se a outra marcha militar escrita por Bruckner com o título de Apollo-Marsch (primeiro ensaio de instrumentação para metais,[6] seguido em 1865 de uma última Marcha, igualmente em mi bemol). Estas três marchas figuram também nos anexos de Goellerich, em redução pianística. Na Marcha em ré menor, já encontramos [...] o protótipo de todos os futuros Scherzi brucknerianos; ela é interessante também pela similitude de seu tema com o tema inicial da Primeira Sinfonia. As outras duas são curiosos exemplos de música militar vienense, próximas de [Franz von] Suppé; no entanto, a autenticidade da Apollomarsch não é certa.»[7]

(Continua, com a segunda parte das Primícias.)         



[2] E também nisto se assemelha a outro católico e grande compositor, César Franck. “Muitos comentadores”, escreve Langevin, “sublinharam o paralelo entre os dois grandes músicos”. Tratá-lo-emos no livro.  
[3] Vide especialmente a comparação que faz Mauro Machado Coelho (em Bruckner, o Menestrel de Deus) entre os dois compositores. Voltarei a tratá-lo aprofundadamente no livro. – Aquele demasiado encarecimento da influência de Wagner sobre Bruckner resulta de uma visão historicista da arte (e da música): cada compositor estaria para os que o influenciaram como uma fatal continuidade histórica, e não, como de fato se dá, como síntese absortiva das mesmas influências, não necessariamente superior a estas. No caso de Bruckner, como se verá no devido lugar, não só se trata de síntese (analogamente a como a doutrina de Santo Tomás de Aquino é uma síntese – não um mosaico – de tudo quanto de verdadeiro a antecedeu), mas esta síntese sinfônica é superior a toda a influência musical que ela absorveu.    
[4] Poder-se-iam incluir entre tais primícias ainda um Quatuor e um Rondó.
[5] Como se verá, as futuras sinfonias de Bruckner como que se esgarçam entre vários manuscritos e edições.
[6] A título de ilustração para os iniciantes, diga-se que uma orquestra sinfônica se compõe de cinco classes ou seções de instrumentos:
• as cordas (violinos, violas, violoncelos, contrabaixos, harpas, etc.);
• as madeiras (flautas, flautins, oboés, corne-inglês, clarinetes, clarinete baixo, fagotes, contrafagotes);
• os metais (trompetes, trombones, trompas, tubas [em Wagner e em Brukner, tubas wagnerianas]);
• os instrumentos de percussão (tímpanos, triângulo, caixas, bombo, pratos, carrilhão sinfônico, etc.);
• os instrumentos de teclas (piano, cravo, órgão).
Os metais serão centrais na orquestração sinfônica bruckneriana: chamo-os aí “as trombetas da fé”.
[7] Links quanto a esta Marcha:
Marsch Es-Dur, WAB 116 Critical discography by Hans Roelofs (German).
• A performance of Bruckner’s Military march by the United States Coast Guard Band can be heard on John Berky's website: March in E Flat, October 2013.
• Another performance by the Tokyo Wind Sinfonica can be heard on YouTube: Marsch in Es-Dur (WAB 116), January 2015.

Bruckner Symphony No 8 (Celibidache, Münchner Philharmoniker): "A mais bela sinfonia jamais escrita"


Foi Celibidache quem o disse; e não podemos senão concordar com ele. É obra de um mestre que já é senhor cabal de todos os seus meios. Tudo aqui é perfeito. Mas de destacar, como se fora possível, é o Finale (Fierlich, nicht schnell), que Celibidache, como Jochum e Wand, mantém íntegro segundo a edição de Robert Haas, contrariamente ao que faz Klemperer (por motivos antes obscuros ou idiossincrásicos).