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sábado, 10 de setembro de 2016

Da Arte de Traduzir


Carlos Nougué

I

A Tradução, arte subalternada à Linguagem e à Gramática, tem por duplo objeto 1) o discurso ou o texto por traduzir e 2) seu destinatário, ou seja, fazer compreensível a este, em sua língua, o dito ou o escrito em outra língua; e tem por fim contra-arrestar a própria multiplicidade das línguas. Com efeito, a linguagem visa à comunicabilidade universal entre os homens – ou seja, a atender à sua natureza social e política –, e a multiplicidade linguística vai a contrapelo dessa tendência e natureza, razão por que diz com toda a razão Aristóteles que os que falam línguas diferentes não convivem bem.[1]

II

Mas a Tradução é um gênero que se divide em duas espécies: a Tradução Oral e a Tradução Escrita. Esta, por sua vez, também é gênero de duas espécies: a Tradução Stricto Sensu e a Tradução Literária. Esta última, todavia, é igualmente um gênero, que, por seu turno, se divide em três espécies: a Tradução Poética, a Tradução Dramática e a Tradução de Prosa Literária. Ademais, e para complicar um pouco o assunto, muitos filósofos, teólogos, historiadores... se valem de recursos literários como arte aplicada, com o que o que os traduz tem de valer-se de recursos tradutórios hauridos da Tradução Literária. Como se fora pouco, todo tradutor multilíngue sabe que uma coisa é traduzir do espanhol ao português, outra do francês ao português, outra do latim ao português... Que não implicará, então, traduzir do chinês ao português!
O que porém distingue exatamente a Tradução Stricto Sensu e a Tradução Literária? E de que necessita o tradutor para ser tradutor literário?

III

A Tradução Stricto Sensu simplesmente verte[2] a determinada língua o escrito em outra língua. Mas a Tradução Literária, se igualmente verte a determinada língua o escrito em outra língua, não o faz senão enquanto ambas as línguas são mera matéria para outra arte: a Poética.[3] Com efeito, como escrevi na Suma Gramatical da Língua Portuguesa ao tratar da pontuação, “há que repetir: à Poética, o poético. E repetimo-lo até porque, ainda que lido, qualquer conjunto de versos entre dois sinais de pontuação final tem entoação ditada não principalmente pela expressão de ideias ou de sentimentos, mas por sua mesma forma poética (no caso d’Os Lusíadas, epopeia vazada em versos decassílabos heroicos, ou seja, aqueles em que o acento tônico recai na sexta e na décima sílaba). O exemplo d’Os Lusíadas pode dizer-se frase, sim, mas apenas analogicamente, porque a frase propriamente dita, com seu sinal de pontuação final, é signo de algo dito com certa entoação linguística, ao passo que a frase camoniana é signo de algo dito, antes de tudo, insista-se, com certa entoação poética”. Que quero dizer aqui com tudo isso? Que, conquanto o tradutor literário verta a dada língua outra língua, não o faz senão para manter a forma literária que se valeu desta outra língua como de sua matéria. Naturalmente, tal fim – manter a forma literária vazada em outra língua – é perfeitamente “assimptótico”,[4] e o grau de seu êxito depende de múltiplas variáveis, como a distância entre as línguas entre as quais se fará o trânsito tradutório: com efeito, é muito mais fácil manter a forma literária quando se traduz do espanhol ao português do que quando se traduz do japonês ao português.       
IV

O tradutor literário supõe uma série de predisposições e de domínios: capacidade para traduzir e certa capacidade literária,[5] domínio da gramática e da literatura tanto da língua para a qual traduz como da(s) língua(s) das quais traduz... – e radical humildade, porque a Tradução Literária não é mais que um ofício serviçal: está a serviço da arte alheia.

V

Pois bem, é de tudo isso e de muito mais – os princípios e as técnicas da Tradução Literária – que tratarei no curso online de três aulas (de duas horas cada uma) O Que É a Tradução Literária:


que começará na próxima quinta-feira. Nele tentarei transmitir minha experiência de tradutor literário de várias línguas ao português que conta em sua bagagem mais de trezentos livros traduzidos, de Quevedo a Cícero, de Cervantes a Santo Tomás de Aquino.
Em outubro, ademais, ministrarei outro curso de características similares, mas sobre a Tradução [em geral] do Espanhol ao Português:


Os dois cursos ministrar-se-ão pela Escola de Tradutores:


Muito obrigado desde já aos que se inscreverem.    




[1] Estudo-o detidamente tanto na Suma Gramatical da Língua Portuguesa (É Realizações) como no primeiro opúsculo de Estudos Tomistas (Edições Santo Tomás), “Gramática, Arte Subalternada à Lógica”.
[2] Não há a menor distinção semântica entre traduzir, transladar e verter.
[3] A Poética constitui um gênero cujas espécies são justamente a Poesia, o Drama e a Prosa Artística.
[4]  Em geometria, assímptota é a reta que se aproxima indefinidamente de determinada curva sem que, todavia, haja possibilidade de as duas virem a coincidir.
[5] Não necessariamente o tradutor literário há de ser, ele mesmo, escritor literário. Por vezes, aliás, sê-lo dificulta o assumir a “personalidade” artística do escritor que se traduz. Basta que o tradutor seja ótimo leitor literário, saiba escrever em geral e tenha desenvolvido a capacidade de traduzir. Com efeito, a arte de traduzir é um hábito intelectual distinto do da arte literária. Mas nada impede que um escritor literário também tenha capacidade tradutória e, pois, capacidade para despir-se de sua “personalidade” artística a fim de revestir-se da de outro.