12. Excetuadas as melodias próprias do celebrante e dos ministros, que sempre devem ser em gregoriano, sem acompanhamento de órgão, todo o restante canto litúrgico faz parte do coro dos levitas. Por isso, os cantores, ainda que leigos, realizam, propriamente, as funções de coro eclesiástico, devendo as músicas, ao menos na sua maior parte, conservar o caráter de música de coro.
Não se entende com isto excluir, de todo, os solos; mas estes não devem nunca predominar de tal maneira que a maior parte do texto litúrgico seja assim executada; deve antes ter o caráter de uma simples frase melódica e estar intimamente ligada ao resto da composição coral.
13. Os cantores têm na Igreja um verdadeiro ofício litúrgico e, por isso, as mulheres sendo incapazes de tal ofício, não podem ser admitidas a fazer parte do coro ou da capela musical. Querendo-se, pois, ter vozes agudas de sopranos e contraltos, empreguem-se os meninos, segundo o uso antiquíssimo da Igreja.
14. Finalmente, não se admitam a fazer parte da capela musical senão homens de conhecida piedade e probidade de vida, os quais, com a sua devota e modesta atitude, durante as funções litúrgicas, se mostrem dignos do santo ofício que exercem. Será, além disso, conveniente que os cantores, enquanto cantam na igreja, vistam hábito eclesiástico e sobrepeliz e que, se o coro estiver muito exposto à vista do público, seja resguardado por grades.
VI. Órgão e Instrumentos
15. Posto que a música própria da Igreja é a música meramente vocal, contudo também se permite a música com acompanhamento de órgão. Nalgum caso particular, com as convenientes cautelas, poderão admitir-se outros instrumentos nunca sem o consentimento especial do Ordinário, conforme as prescrições do Caeremoniale Episcoporum.
16. Como o canto tem de ouvir-se sempre, o órgão e os instrumentos devem simplesmente sustentá-lo, e nunca encobri-lo.
17. Não é permitido antepor ao canto extensos prelúdios, ou interrompê-lo com peças de interlúdios.
18. O som do órgão, nos acompanhamentos do canto, nos prelúdios, interlúdios e outras passagens semelhantes, não só deve ser de harmonia com a própria natureza de tal instrumento, isto é, grave, mas deve ainda participar de todas as qualidades que tem a verdadeira música sacra, acima mencionadas.
19. É proibido, na Igreja, o uso do piano bem como o de instrumentos fragorosos, o tambor, o bombo, os pratos, as campainhas e semelhantes.
20. É rigorosamente proibido que as bandas musicais toquem nas igrejas, e só em algum caso particular, com o consentimento do Ordinário, será permitida uma escolha limitada, judiciosa e proporcionada ao ambiente de instrumentos de sopro, contanto que a composição seja em estilo grave, conveniente e semelhante em tudo às do órgão.
21. Nas procissões, fora da igreja, pode o Ordinário permitir a banda musical, uma vez que não se executem composições profanas. Seria para desejar que a banda se restringisse a acompanhar algum cântico espiritual, em latim ou vulgar, proposto pelos cantores ou pias congregações que tomam parte na procissão.
VII. Amplitude da Música Sacra
22. Não é licito, por motivo do canto, fazer esperar o sacerdote no altar mais tempo do que exige a cerimônia litúrgica. Segundo as prescrições eclesiásticas, o Sanctus deve ser cantado antes da elevação, devendo o celebrante esperar que o canto termine, para fazer a elevação. A música da Glória e do Credo, segundo a tradição gregoriana, deve ser relativamente breve.
23. É condenável, como abuso gravíssimo, que nas funções eclesiásticas a liturgia esteja dependente da música, quando é certo que a música é que é parte da liturgia e sua humilde serva.
VIII. Meios principais
24. Para o exato cumprimento de quanto fica estabelecido, os Bispos, se ainda não o fizeram, instituam, nas suas dioceses, uma comissão especial de pessoas verdadeiramente competentes na música sacra, à qual confiarão o cargo de vigiar as músicas que se vão executando em suas igrejas para que sejam conformes com estas determinações. Nem atender somente a que sejam boas as músicas, senão também a que correspondam ao valor dos cantores, para haver boa execução.
25. Nos Seminários e nos Institutos eclesiásticos, segundo as prescrições tridentinas, consagrem-se todos os alunos ao estudo do canto gregoriano e os superiores sejam liberais em animar e louvar os seus súditos. Igualmente, onde for possível, promova-se entre os clérigos a fundação de uma Schola Cantorum para a execução da sagrada polifonia e da boa música litúrgica.
26. Nas lições ordinárias de Liturgia, Moral e Direito Canônico, que se dão aos estudantes de teologia, não se deixe de tocar naqueles pontos que, de modo mais particular, dizem respeito aos princípios e leis da música sacra, e procure-se completar a doutrina com alguma instrução especial acerca da estética da arte sacra, para que os clérigos não saiam dos seminários ignorando estas noções, tão necessária à plena cultura eclesiástica.
27. Tenha-se o cuidado de restabelecer, ao menos nas igrejas principais, as antigas Scholae Cantorum, como se há feito já, com ótimo fruto, em muitos lugares. Não é difícil, ao clero zeloso, instituir tais Scholae, mesmo nas igrejas de menor importância, e até encontrará nelas um meio fácil para reunir em volta de si os meninos e os adultos, com proveito para eles e edificação do povo.
28. Procure-se sustentar e promover, do melhor modo, as escolas superiores de música sacra, onde já existem, e concorrer para fundá-las, onde as não há. É sumamente importante que a mesma igreja atenda à instrução dos seus mestres de música, organistas e cantores, segundo os verdadeiros princípios da arte sacra.
IX. Conclusão
29. Por último, recomenda-se aos mestres de capela, aos cantores, aos clérigos, aos superiores dos Seminários, Institutos eclesiásticos e comunidades religiosas, aos párocos e reitores de igrejas, aos cônegos das colegiadas e catedrais, e sobretudo aos Ordinários diocesanos, que favoreçam, com todo o zelo, estas reformas de há muito desejadas e por todos unanimemente pedidas, para que não caia em desprezo a autoridade da Igreja que repetidamente as propôs e agora de novo as inculca.
Dado no Nosso Palácio do Vaticano, na festa da Virgem e Mártir Santa Cecília, 22 de Novembro de 1903, primeiro ano do nosso pontificado.
PAPA PIO X
II
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Pio XII |
CARTA ENCÍCLICA DO PAPA PIO XII
MUSICAE SACRAE DISCIPLINA
SOBRE A MÚSICA SACRA
Aos veneráveis irmãos Patriarcas, Primazes, Arcebispos, Bispos e outros Ordinários de lugar, em paz e comunhão com a Sé Apostólica.
INTRODUÇÃO
1. Sempre tivemos sumamente em consideração a disciplina da música sacra; donde haver-nos parecido oportuno tratar ordenadamente dela, e, ao mesmo tempo, elucidar com certa amplitude muitas questões surgidas e discutidas nestes últimos decênios, a fim de que esta nobre e respeitável arte contribua cada vez mais para o esplendor do culto divino e para uma mais intensa vida espiritual dos fiéis. Quisemos, a um tempo, vir ao encontro dos votos que muitos de vós, veneráveis irmãos, na vossa sabedoria, exprimistes, e que também insignes mestres desta arte liberal e exímios cultores de música sacra formularam por ocasião de Congressos sobre tal matéria, e ao encontro também de tudo quanto a esse respeito têm aconselhado a experiência da vida pastoral e os progressos da ciência e dos estudos sobre esta arte. Assim, nutrimos esperança de que as normas sabiamente fixadas por São Pio X no documento por ele com toda razão chamado “código jurídico da música sacra”(1) serão novamente confirmadas e inculcadas, receberão nova luz, e serão corroboradas por novos argumentos; de tal sorte que a nobre arte da música sacra, adaptada às condições presentes e, de certo modo, enriquecida, corresponda sempre mais à sua alta finalidade.
I. HISTÓRIA
2. Entre os muitos e grandes dons de natureza com que Deus, em quem há harmonia de perfeita concórdia e suma coerência, enriqueceu o homem, criado à sua “imagem e semelhança”,(2) deve-se incluir a música, que, juntamente com as outras artes liberais, contribui para o gozo espiritual e para o deleite da alma. Com razão assim escreve dela Agostinho: “A música, isto é, a doutrina e a arte de bem modular, como anúncio de grandes coisas foi concedida pela divina liberalidade aos mortais dotados de alma racional”.(3)
No Antigo Testamento e na Igreja primitiva
3. Nada de admirar, pois, que o canto sacro e a arte musical também tenham sido usados, conforme consta de muitos documentos antigos e recentes, para ornamento e decoro das cerimônias religiosas sempre e em toda parte, mesmo entre os povos pagãos; e que sobretudo o culto do verdadeiro e sumo Deus desde a antiguidade se tenha valido dessa arte. O povo de Deus, escapando incólume do mar Vermelho por milagre do poder divino, cantou a Deus um cântico de vitória; e Maria, irmã do guia Moisés, dotada de espírito profético, cantou ao som dos tímpanos, acompanhada pelo canto do povo.(4) E, posteriormente, enquanto se conduzia a arca de Deus da casa de Abinadab para a cidade de Davi, o próprio rei e “todo Israel dançavam diante de Deus com instrumentos de madeira trabalhada, cítaras, liras, tímpanos, sistros e címbalos”.(5) O próprio rei Davi fixou as regras da música a usar-se no culto sagrado, e do canto;(6) regras que foram restabelecidas após o regresso do povo do exílio, e fielmente conservadas até a vinda do divino Redentor. Depois, que na Igreja fundada pelo divino Salvador o canto sacro desde o princípio estivesse em uso e honra, é claramente indicado por são Paulo apóstolo, quando aos efésios assim escreve: “Sede cheios do Espírito Santo, recitando entre vós salmos e hinos e cânticos espirituais”(7) e que esse uso de cantar salmos estivesse em vigor também nas assembleias dos cristãos, indica-o ele com estas palavras: “Quando vos reunis, alguns entre vós cantam o salmo”.(8) E que o mesmo acontecesse após a idade apostólica é atestado por Plínio, que escreve haverem os que tinham renegado a fé afirmado que “esta era a substância da falta de que eram inculpados, a saber: o costumarem a reunir-se num dado dia antes do aparecer da luz e cantarem um hino a Cristo como a Deus”.(9) Essas palavras do procônsul romano da Bitínia mostram claramente que nem mesmo no tempo da perseguição emudecia de todo a voz do canto da Igreja; isto confirma-o Tertuliano quando narra que nas assembleias dos cristãos “se leem as Escrituras, cantam-se salmos, promove-se a catequese”.(10)
O canto gregoriano
4. Restituída à Igreja a liberdade e a paz, muitos testemunhos se têm, dos padres e dos escritores eclesiásticos, que confirmam serem de uso quase diário os salmos e os hinos do culto litúrgico. Antes, pouco a pouco se criaram mesmo novas formas e se excogitaram novos gêneros de cantos, cada vez mais aperfeiçoados pelas escolas de música, especialmente em Roma. O nosso predecessor, de feliz memória, são Gregório Magno, consoante a tradição reuniu cuidadosamente tudo o que havia sido transmitido, e deu-lhe sábia ordenação, provendo, com oportunas leis e normas, a assegurar a pureza e a integridade do canto sacro. Da santa cidade a modulação romana do canto aos poucos se introduziu em outras regiões do ocidente, e não somente ali se enriqueceu de novas formas e melodias, como também começou mesmo a ser usada uma nova espécie de canto sacro, o hino religioso, às vezes em língua vulgar. O próprio canto coral, que, pelo nome do seu restaurador, são Gregório, começou a chamar-se “Gregoriano”, a começar dos séculos VIII e IX, em quase todas as regiões da Europa cristã, adquiriu novo esplendor, com o acompanhamento do instrumento musical chamado “órgão”.
O canto polifônico
5. A partir do século IX, pouco a pouco a esse canto coral se juntou o canto polifônico, cuja teoria e prática se precisaram cada vez mais nos séculos subsequentes, e que, sobretudo no século XV e no XVI, por obra de sumos artistas alcançou admirável perfeição. A Igreja também teve sempre em grande honra este canto polifônico, e de bom grado admitiu-o para maior decoro dos ritos sagrados nas próprias basílicas romanas e nas cerimônias pontifícias. Com isso se lhe aumentaram a eficácia e o esplendor, porque à voz dos cantores se aditou, além do órgão, o som de outros instrumentos musicais.
A vigilância da Igreja
6. Desse modo, por impulso e sob os auspícios da Igreja, a disciplina da música sacra no decurso dos séculos percorreu longo caminho, no qual, embora talvez com lentidão e a custo, paulatinamente realizou contínuos progressos: das simples e ingênuas melodias gregorianas até às grandes e magníficas obras de arte, a que não só a voz humana, mas também o órgão e os outros instrumentos aduzem dignidade, ornamento e prodigiosa riqueza. O progresso dessa arte musical, ao passo que mostra claramente o quanto a Igreja se tem preocupado com tornar cada vez mais esplêndido e agradável ao povo cristão o culto divino, por outra parte explica como a mesma Igreja tenha tido, às vezes, de impedir que se ultrapassem nesse terreno os justos limites, e que, juntamente com o verdadeiro progresso, se infiltrasse na música sacra, deturpando-a, certo quê de profano e de alheio ao culto sagrado.
7. A esse dever de solícita vigilância sempre foram fiéis os sumos pontífices; e também o concílio de Trento sabiamente proscreveu: “as músicas em que, ou no órgão ou no canto, se mistura algo de sensual e de impuro”.(11) Deixando de parte não poucos outros papas, o nosso predecessor de feliz memória Bento XIV, em carta encíclica de 19 de Fevereiro de 1749, em preparação ao ano jubilar, com abundante doutrina e cópia de argumentos exortou de modo particular os bispos a proibirem por todos os meios, os reprováveis abusos que indebitamente se haviam introduzido na música.(12) O mesmo caminho seguiram os nossos predecessores Leão XII, Pio VIII,(13) Gregório XVI, Pio IX, Leão XIII.(14) Todavia, em bom direito pode-se afirmar haver sido o nosso predecessor, de feliz memória, São Pio X, quem realizou uma restauração e reforma orgânica da música sacra, tornando a inculcar os princípios e as normas transmitidos pela antiguidade, e oportunamente reordenando-os segundo as exigências dos tempos modernos.(15) Finalmente, tal como o nosso imediato predecessor Pio XI, de feliz memória, com a constituição apostólica “Divini cultus sanctitatem”, de 20 de Dezembro de 1929,(16) também nós mesmos, com a encíclica “Mediator Dei”, de 20 de novembro de 1947, ampliamos e corroboramos as prescrições dos pontífices precedentes.(17)
II. A ARTE E SEUS PRINCÍPIOS NA LITURGIA
8. A ninguém, certamente, causará admiração o fato de interessar-se tanto a Igreja pela música sacra. Com efeito, não se trata de ditar leis de caráter estético ou técnico a respeito da nobre disciplina da música; ao contrário, é intenção da Igreja que esta seja defendida de tudo que possa diminuir-lhe a dignidade, sendo, como é, chamada a prestar serviço num campo de tamanha importância como é o do culto divino.
A liberdade do artista deve estar
sujeita à lei divina
9. Nisto a música sacra não obedece a leis e normas diversas das que regulam todas as formas de arte religiosa, antes a própria arte em geral. Na verdade, não ignoramos que nestes últimos anos alguns artistas, com grave ofensa da piedade cristã, ousaram introduzir nas Igrejas obras destituídas de qualquer inspiração religiosa, e em pleno contraste até mesmo com as justas regras da arte. Procuram eles justificar esse deplorável modo de agir com argumentos especiosos, que eles pretendem fazer derivar da natureza e da própria índole da arte. Afinal, dizem eles que a inspiração artística é livre, que não é lícito subordiná-la a leis e normas estranhas à arte, sejam elas morais ou religiosas, porque desse modo se viria a lesar gravemente a dignidade da arte e a criar, com vínculos e ligames, óbices ao livre curso da ação do artista sob a sagrada influência do estro [entusiasmo artístico, riqueza de imaginação].
10. Com argumentos tais é suscitada uma questão sem dúvida grave e difícil, atinente a qualquer manifestação de arte e a qualquer artista; questão que não pode ser resolvida com argumentos tirados da arte e da estética, mas que, em vez disso, deve ser examinada à luz do supremo postulado do fim último, regra sagrada e inviolável de todo homem e de toda ação humana. De fato, o homem diz ordem ao seu fim último ― que é Deus ― por força de uma lei absoluta e necessária, fundada na infinita perfeição da natureza divina, de maneira tão plena e perfeita, que nem mesmo Deus poderia eximir alguém de observá-la. Com essa lei eterna e imutável fica estabelecido que o homem e todas as suas ações devem manifestar, em louvor e glória do Criador, a infinita perfeição de Deus, e imitá-la tanto quanto possível. Por isso o homem, destinado por sua natureza a alcançar esse fim supremo, deve, no seu agir, conformar-se ao divino Arquétipo, e nessa direção orientar todas as faculdades da alma e do corpo, ordenando-as retamente entre si, e devidamente domando-as para alcançar o seu fim. Portanto, também a arte e as obras artísticas devem ser julgadas com base na sua conformidade, com o fim último do homem; e, por certo, deve a arte contar-se entre as mais nobres manifestações do engenho humano, porque atinente ao modo de exprimir por obras humanas a infinita beleza de Deus, de que é ela o revérbero. Razão pela qual, a conhecida expressão “a arte pela arte” ― com a qual, posto de parte aquele fim que é ingênito em toda criatura, erroneamente se afirma que a arte não tem outras leis senão aquelas que promanam da sua natureza, ― essa expressão ou não tem valor algum, ou importa grave ofensa ao próprio Deus, Criador e fim último. Depois, a liberdade do artista ― liberdade que não é um instinto, cego para a ação, regulado somente pelo arbítrio ou por certa sede de novidade ―, pelo fato de estar sujeita à lei divina em nada é coarctada ou sufocada, mas, antes, enobrecida e aperfeiçoada.
A arte religiosa exige artistas
inspirados pela fé e pelo amor
11. Isso, se vale para toda a obra de arte, claro é que deve aplicar-se também a respeito da arte sacra e religiosa. Antes, a arte religiosa é ainda mais vinculada a Deus e dirigida a promover o seu louvor e a sua glória, visto não ter outro escopo a não ser o de ajudar poderosamente os fiéis a elevar piedosamente a sua mente a Deus, agindo ela, por meio das suas manifestações, sobre os sentidos da vista e do ouvido. Daí que, o artista sem fé, ou arredio de Deus com a sua alma e com a sua conduta, de maneira alguma deve ocupar-se de arte religiosa; realmente, não possui ele aquele olho interior que lhe permite perceber o que é requerido pela majestade de Deus e pelo seu culto. Nem se pode esperar que as suas obras, destituídas de inspiração religiosa ― mesmo se revelam a perícia e certa habilidade exterior do autor ―, possam inspirar aquela fé e aquela piedade que convêm à majestade da casa de Deus; e, portanto, nunca serão dignas de ser admitidas no templo da igreja, que é a guardiã e o árbitro da vida religiosa.
12. Ao invés, o artista que tem fé profunda e leva conduta digna de um cristão, agindo sob o impulso do amor de Deus e pondo os seus dotes a serviço da religião por meio das cores, das linhas e da harmonia dos sons, fará todo o esforço para exprimir a sua fé e a sua piedade com tanta perícia, beleza e suavidade, que esse sagrado exercício da arte constituirá para ele um ato de culto e de religião, e estimulará grandemente o povo a professar a fé e a cultivar a piedade. Tais artistas são e sempre serão tidos em honra pela Igreja; esta lhes abrirá as portas dos templos, visto comprazer-se no contributo não pequeno que, com a sua arte e com a sua operosidade, eles dão para um mais eficaz desenvolvimento do seu ministério apostólico.
A finalidade da música sacra
13. Essas leis da arte religiosa vinculam com ligame ainda mais estreito e mais santo a música sacra, visto estar esta mais próxima do culto divino do que as outras belas-artes, como a arquitetura, a pintura e a escritura; estas procuram preparar uma digna sede para os ritos divinos, ao passo que aquela ocupa lugar de primeira importância no próprio desenvolvimento das cerimônias e dos ritos sagrados. Por isso, deve a Igreja, com toda diligência; providenciar para remover da música sacra, justamente por ser esta a serva da sagrada liturgia, tudo o que destoa do culto divino ou impede os féis de elevarem sua mente a Deus.
14. E, de fato, nisto consiste a dignidade e a excelsa finalidade da música sacra, a saber, em ― por meio das suas belíssimas harmonias e da sua magnificência ― trazer decoro e ornamento às vozes quer do sacerdote ofertante, quer do povo cristão que louva o sumo Deus; em elevar os corações dos fiéis a Deus por uma intrínseca virtude sua, em tornar mais vivas e fervorosas as orações litúrgicas da comunidade cristã, para que Deus uno e trino possa ser por todos louvado e invocado com mais intensidade e eficácia. Portanto, por obra da música sacra é aumentada a honra que a Igreja dá a Deus em união com Cristo seu chefe; e, outrossim, é aumentado o fruto que, estimulados pelos sagrados acordes, os fiéis tiram da sagrada liturgia e costumam manifestar por uma conduta de vida dignamente cristã, como mostra a experiência cotidiana e como confirmam muitos testemunhos de escritores antigos e recentes. Falando dos cânticos “executados com voz límpida e com modulações apropriadas”, assim se exprime santo Agostinho: “Sinto que as nossas almas se elevam na chama da piedade com um ardor e uma devoção maior por efeito daquelas santas palavras quando elas são acompanhadas pelo canto, e todos os diversos sentimentos do nosso espírito acham no canto uma sua modulação própria, que os desperta por força de não sei que relação oculta e íntima”.(18)
Seu papel litúrgico
15. Por aqui, facilmente se pode compreender como a dignidade e a importância da música sacra, seja tanto maior quanto mais de perto a sua ação se relaciona com o ato supremo do culto cristão, isto é, com o sacrifício eucarístico do altar. Não pode ela, pois, realizar nada de mais alto e de mais sublime do que o ofício de acompanhar com a suavidade dos sons a voz do sacerdote que oferece a vítima divina, do que responder alegremente às suas perguntas juntamente com o povo que assiste ao sacrifício, e do que tornar mais esplêndido com a sua arte todo o desenvolvimento do rito sagrado. Da dignidade desse excelso serviço aproximam-se, pois, os ofícios que a mesma música sacra exerce quando acompanha e embeleza as outras cerimônias litúrgicas, e em primeiro lugar a recitação do breviário no coro. Por isso, essa musica “litúrgica” merece suma honra e louvor.
Seu papel extralitúrgico
16. Não obstante isso, em grande estima se deve ter também a música que, embora não sendo destinada principalmente ao serviço da sagrada liturgia, todavia, pelo seu conteúdo e pelas suas finalidades, importa muitas vantagens à religião, e por isso com toda razão é chamada música “religiosa”. Na verdade, também este gênero de música sacra ― que teve origem no seio da Igreja, e que sob os auspícios desta pôde felizmente desenvolver-se, está, como o demonstra a experiência, no caso de exercer nas almas dos fiéis uma grande e salutar influência, quer seja usada nas igrejas durante as funções e as sagradas cerimônias não litúrgicas, quer fora de igreja, nas várias solenidades e celebrações. De fato, as melodias desses cantos, compostos as mais das vezes em língua vulgar, fixam-se na memória quase sem esforço e sem trabalho, e, ao mesmo tempo também, as palavras e os conceitos se imprimem na mente, são frequentemente repetidos e mais profundamente compreendidos. Daí segue que até mesmo os meninos e as meninas, aprendendo na tenra idade esses cânticos sacros, são muito ajudados a conhecer, a apreciar e a recordar as verdades da nossa fé, e assim o apostolado catequético tira deles não leve vantagem. Depois, esses cânticos religiosos, enquanto recreiam a alma dos adolescentes e dos adultos, oferecem a estes um casto e puro deleite, emprestam certo tom de majestade religiosa às assembleias e reuniões mais solenes, e até às próprias famílias cristãs trazem santa alegria, doce conforto e espiritual proveito. Razão pela qual, também este gênero de música religiosa popular constitui uma eficaz ajuda para o apostolado católico, e, assim, com todo cuidado deve ser cultivado e desenvolvido.
A música sacra é um meio eficaz de apostolado
17. Portanto, quando exaltamos as prendas múltiplas da música sacra e a sua eficácia em relação ao apostolado, fazemos coisa que pode tornar-se de sumo prazer e conforto para aqueles que, de qualquer maneira, se hão dedicado a cultivá-la e a promovê-la. Afinal, todos quantos ou compõem música segundo o seu próprio talento artístico, ou a dirigem ou a executam vocalmente ou por meio de instrumentos musicais, todos esses, sem dúvida, exercitam um verdadeiro e real apostolado, mesmo de modo vário e diverso, e por isso receberão em abundância, de Cristo nosso Senhor, as recompensas e as honras reservadas aos apóstolos, à medida que cada um houver desempenhado fielmente o seu cargo. Por isso estimem eles grandemente essa sua incumbência, em virtude da qual não são apenas artistas e mestres de arte, mas também ministros de Cristo nosso Senhor e colaboradores no apostolado, e esforcem-se por manifestar também pela conduta da vida a dignidade desse seu mister.
III. QUALIDADE DA MÚSICA SACRA E REGRAS QUE PRESIDEM SUA EXECUÇÃO NA LITURGIA
18. Tal sendo, como já dissemos, a dignidade e a eficácia da música sacra e do canto religioso, grandemente necessário é cuidar-lhes diligentemente da estrutura em toda a parte, para tirar deles utilmente os frutos salutares.
Santidade, caráter artístico e
universalidade da música litúrgica
19. Necessário é, antes de tudo, que o canto e a música sacra, mais intimamente unidos com o culto litúrgico da Igreja, atinjam o alto fim a eles consignado. Por isso ― como já sabiamente advertia o nosso predecessor S. Pio X ― essa música “deve possuir as qualidades próprias da liturgia, e em primeiro lugar a santidade e a beleza da forma; por onde de per se se chega a outra característica sua, a universalidade”.(19) 20. Deve ser “santa”; não admita ela em si o que soa de profano, nem permita que se insinue nas melodias com que é apresentada. A essa santidade se presta sobretudo o canto gregoriano, que desde tantos séculos se usa na Igreja, a ponto de se poder dizê-lo patrimônio seu. Pela íntima aderência das melodias às palavras do texto sagrado, esse canto não só quadra a este plenamente, mas parece quase interpretar-lhe a força e a eficácia, instilando doçura na alma de quem o escuta; e isso por meios musicais simples e fáceis, mas permeados de tão sublime e santa arte, que em todos suscitam sentimentos de sincera admiração, e se tornam para os próprios entendedores e mestres de música sacra uma fonte inexaurível de novas melodias. Conservar cuidadosamente esse precioso tesouro do canto gregoriano e fazer o povo amplamente participante dele, compete a todos aqueles a quem Jesus Cristo confiou a guarda e a dispensação das riquezas da Igreja. Por isso, aquilo que os nossos predecessores S. Pio X, com toda a razão chamado restaurador do canto gregoriano,(20) e Pio XI,(21) sabiamente ordenaram e inculcaram, também nós queremos e prescrevemos que se faça, prestando-se atenção às características que são próprias do genuíno canto gregoriano; isto é, que na celebração dos ritos litúrgicos se faça largo uso desse canto, e se providencie com todo o cuidado para que ele seja executado com exatidão, dignidade e piedade. E, se para as festas recém-introduzidas se deverem compor novas melodias, seja isso feito por mestres verdadeiramente competentes, de modo que se observem fielmente as leis próprias do verdadeiro canto gregoriano, e as novas composições porfiem, em valor e pureza, com as antigas. 21. Se em tudo essas normas forem realmente observadas, vir-se-á outrossim a satisfazer pelo modo devido uma outra propriedade da música sacra, isto é, que ela seja “verdadeira arte”; e, se em todas as Igrejas católicas do mundo ressoar incorrupto e íntegro o canto gregoriano, também ele, como a liturgia romana, terá a nota de “universalidade”, de modo que os féis em qualquer parte do mundo ouçam essas harmonias como familiares e como coisa de casa, experimentando assim, com espiritual conforto, a admirável unidade da Igreja. É esse um dos motivos principais por que a Igreja mostra tão vivo desejo de que o canto gregoriano esteja intimamente ligado às palavras latinas da sagrada liturgia.
Somente a Santa Sé pode dispensar o uso do latim
e do canto gregoriano nas missas solenes
22. Bem sabemos que, por graves motivos, a própria Sé Apostólica tem concedido, a esse respeito, algumas exceções bem determinadas, as quais, entretanto, não queremos sejam estendidas e aplicadas a outros casos sem a devida licença da mesma Santa Sé. Antes, lá mesmo onde se possam utilizar tais concessões, cuidem atentamente os ordinários e os outros sagrados pastores, que desde a infância os fiéis aprendam ao menos as melodias gregorianas mais fáceis e mais em uso, e saibam valer-se delas nos sagrados ritos litúrgicos, de modo que também nisso brilhe sempre mais a unidade e a universalidade da Igreja.
23. Todavia, onde quer que um costume secular ou imemorial permita que no solene sacrifício eucarístico, depois das palavras litúrgicas cantadas em latim, se insiram alguns cânticos populares em língua vulgar, permiti-lo-ão os ordinários “quando julgarem que pelas circunstâncias de lugar e de pessoas tal (costume) não possa ser prudentemente removido”,(22) firme permanecendo a norma de que não se cantem em língua vulgar as próprias palavras da liturgia, como acima já foi dito.
Para que os féis compreendam melhor
os textos latinos, sejam eles explicados
24. Depois, a fim de que os cantores e o povo cristão entendam bem o significado das palavras litúrgicas ligadas à melodia musical, fazemos nossa a exortação dirigida pelos padres do concílio de Trento, especialmente “aos pastores e aos que têm simples cura de almas, no sentido de, com frequência, durante a celebração da missa, explicarem, diretamente ou por intermédio de outros, alguma parte daquilo que se lê na missa, e, entre outras coisas, esclarecerem algum mistério deste santo sacrifício, especialmente nos Domingos e nos dias de festa”,(23) fazendo isso sobretudo no tempo em que se explica o catecismo ao povo cristão. Isso mais fácil e mais factível se torna hoje em dia do que nos séculos passados, visto se terem as palavras da liturgia traduzidas em vulgar, e a sua explicação em manuais e livrinhos que, preparados por pessoas competentes em quase todas as nações, podem eficazmente ajudar e iluminar os fiéis, a fim de que também eles compreendam e como que compartilhem a dicção dos ministros sagrados em língua latina.
A Santa Sé vigia para conservar e promover
os cantos litúrgicos de outros ritos não romanos
25. Óbvio é que o quanto aqui expusemos acerca do canto gregoriano diz respeito sobretudo ao rito latino romano da Igreja; mas pode respectivamente aplicar-se aos cantos litúrgicos de outros ritos, quer do ocidente, como o Ambrosiano, o Galicano, o Moçarábico, quer aos vários ritos orientais. De fato, todos esses ritos, ao mesmo passo que mostram a admirável riqueza da Igreja na ação litúrgica e nas fórmulas de oração, por outra parte, pelos diversos cantos litúrgicos, conservam tesouros preciosos, que cumpre guardar e impedir não só de desaparecerem, como também de sofrerem qualquer atenuação ou deturpação. Entre os mais antigos e importantes documentos da música sacra, têm, sem dúvida, lugar considerável os cantos litúrgicos dos vários ritos orientais, cujas melodias tiveram muita influência na formação das da Igreja ocidental, com as devidas adaptações à índole própria da liturgia latina. É nosso desejo que uma seleção de cantos dos ritos sagrados orientais ― na qual está prazerosamente trabalhando o Pontifício Instituto para os estudos orientais, com o auxílio do Pontifício Instituto para a música sacra ― seja felizmente levada a termo tanto na parte doutrinal como na parte prática; de modo que os seminaristas do rito oriental, bem preparados também no canto sacro, feitos um dia sacerdotes possam, também nisso, eficazmente contribuir para aumentar o decoro da casa de Deus.
A música polifônica
26. Com o que havemos dito para louvar e recomendar o canto gregoriano, não é intenção nossa remover dos ritos da Igreja a polifonia sacra, a qual, desde que exornada das devidas qualidades, pode contribuir bastante para a magnificência do culto divino e para suscitar piedosos afetos na alma dos fiéis. Afinal, bem sabido é que muitos cantos polifônicos, compostos sobretudo no século XVI, brilham por tal pureza de arte e riqueza de melodias, que são inteiramente dignos de acompanhar e como que de tornar mais perspícuos os ritos da Igreja. E, se, no curso dos séculos, a genuína arte da polifonia pouco a pouco decaiu, e não raramente lhe são entremeadas melodias profanas, nos últimos decênios, mercê da obra indefesa de insignes mestres, felizmente ela como que se renovou, mediante um mais acurado estudo das obras dos antigos mestres, propostas à imitação e emulação dos compositores hodiernos.
27. Destarte sucede que, nas basílicas, nas catedrais, nas igrejas dos religiosos, podem executar-se quer as obras-primas dos antigos mestres, quer composições polifônicas de autores recentes, com decoro do rito sagrado; antes sabemos que, mesmo nas igrejas menores, não raramente se executam cantos polifônicos mais simples, porém compostos com dignidade e verdadeiro senso de arte: A Igreja favorece todos estes esforços; realmente, consoante às palavras do nosso predecessor de feliz memória são Pio X, ela “sempre favoreceu o progresso das artes e ajudou-o, acolhendo no uso religioso tudo o que o engenho humano tem criado de bom e de belo no curso dos séculos, desde que ficassem salvas as leis litúrgicas”,(24) Estas leis exigem que, nesta importante matéria, se use de toda prudência e se tenha todo cuidado a fim de que se não introduzam na Igreja cantos polifônicos que, pelo modo túrgido e empolado, ou venham a obscurecer, com a sua prolixidade, as palavras sagradas da liturgia, ou interrompam a ação do rito sagrado, ou, ainda, aviltem a habilidade dos cantores com desdouro do culto divino.
O órgão
28. Devem essas normas aplicar-se, outrossim, ao uso do órgão e dos outros instrumentos musicais. Entre os instrumentos a que é aberta a porta do templo vem, de bom direito, em primeiro lugar o órgão, por ser particularmente adequado aos cânticos sacros e aos sagrados ritos, por conferir às cerimônias da Igreja notável esplendor e singular magnificência, por comover a alma dos fiéis com a gravidade e doçura do seu som, por encher a mente de gozo quase celeste, e por elevar fortemente a Deus e às coisas celestes.
Outros instrumentos de música que podem ser utilizados
29. Além do órgão, há outros instrumentos que podem eficazmente vir em auxílio para se atingir o alto fim da música sacra, desde que nada tenham de profano, de barulhento, de rumoroso, coisas essas destoantes do rito sagrado e da gravidade do lugar. Entre eles vêm, em primeiro lugar, o violino e outros instrumentos de arco, os quais, ou sozinhos ou juntamente com outros instrumentos e com o órgão, exprimem com indizível eficácia os sentimentos, de tristeza ou de alegria, da alma. Aliás, acerca das melodias musicais inadmissíveis no culto católico já falamos claramente na encíclica “Mediator Dei”. “Quando eles não tiverem nada de profano ou de destoante da santidade do lugar e da ação litúrgica, e não forem em busca do extravagante e do extraordinário, tenham também acesso nas nossas igrejas, podendo contribuir não pouco para o esplendor dos ritos sagrados, para elevar a alma para o alto, e para afervorar a verdadeira piedade da alma”.(25) É o caso apenas de advertir que, quando faltarem a capacidade e os meios para tanto, melhor será abster-se de semelhantes tentativas, do que fazer coisa menos digna do culto divino e das reuniões sacras.
Os cânticos populares e seu uso
30. A esses aspectos que têm mais estreita ligação com a liturgia da Igreja juntam-se, como dissemos, os cantos religiosos populares, escritos as mais das vezes em língua vulgar, os quais se originam do próprio canto litúrgico, mas, sendo mais adaptados à índole e aos sentimentos de cada povo em particular, diferem não pouco entre si, conforme o caráter dos povos e a índole particular das nações. A fim de que semelhantes cânticos religiosos proporcionem fruto espiritual e vantagem ao povo cristão, devem ser plenamente conformes ao ensinamento da fé cristã, expô-la e explicá-la retamente, usar linguagem fácil e melodia simples, fugir da profusão de palavras empoladas e vazias, e, finalmente, mesmo sendo breves e fáceis, ter uma certa dignidade e gravidade religiosa. Quando esses cânticos sacros possuem tais dotes, brotando como que do mais profundo da alma do povo, comovem fortemente os sentimentos e a alma, e excitam piedosos afetos; quando se cantam como uma só voz nas funções religiosas da multidão reunida, elevam com grande eficácia a alma dos fiéis às coisas celestes. Por isso, embora, como dissemos, nas missas cantadas solenes não possam eles ser usados sem especial permissão da Santa Sé, todavia nas missas celebradas em forma não solene podem eles admiravelmente contribuir para que os fiéis assistam ao santo sacrifício não tanto como espectadores mudos e quase inertes, mas de forma que, acompanhando com a mente e com a voz a ação sacra, unam a própria devoção às preces do sacerdote, e isso desde que tais cantos sejam bem adaptados às várias partes do sacrifício, como sabemos que já se faz em muitas partes do mundo católico, com grande júbilo espiritual.
31. Quanto às cerimônias não estritamente litúrgicas, tais cânticos religiosos, uma vez que correspondam às condições supraditas, podem contribuir de modo notável para atrair salutarmente o povo cristão, para amestrá-lo, para formá-lo numa sincera piedade, e para enchê-lo de santo regozijo; e isso tanto nas Igrejas como externamente, especialmente nas procissões e nas peregrinações aos santuários, e do mesmo modo nos congressos religiosos nacionais e internacionais. De modo especial serão eles úteis quando se tratar de instruir na verdade católica os meninos e as meninas, como também nas associações juvenis e nas reuniões dos pios sodalícios, tal como muitas vezes o demonstra claramente a experiência.
32. Por isso, não podemos deixar de exortar-vos vivamente, veneráveis irmãos, a vos dignardes, com todo cuidado e por todos os meios, de favorecer e promover nas vossas dioceses esse canto popular religioso. Não vos faltarão homens experientes para recolher e reunir juntos esses cânticos onde não se haja feito, a fim de que por todos os fiéis possam eles ser mais facilmente aprendidos, cantados com desembaraço e bem gravados na memória. Aqueles a quem está confiada a formação religiosa dos meninos e das meninas não deixem de valer-se, pelo modo devido, desses eficazes auxílios, e os assistentes da juventude católica usem deles retamente na grave tarefa que lhes foi confiada. Desse modo pode-se esperar obter mais outra vantagem, que está no desejo de todos, a saber: a de que sejam eliminadas essas canções profanas que, ou pela moleza do ritmo, ou pelas palavras não raro voluptuosas e lascivas que o acompanham, costumam ser perigosas para os cristãos, especialmente para os jovens, e sejam substituídas por essas outras que proporcionam um prazer casto e puro, e que, ao mesmo tempo, alimentam a fé e a piedade; de modo que já aqui na terra o povo cristão comece a cantar aquele cântico de louvor que cantará eternamente no céu: “Àquele que se senta no trono e ao Cordeiro seja bênção, honra, glória e poder pelos séculos dos séculos” (Ap 5,13).
Condições especiais em países de missão
33. O que até aqui escrevemos vigora sobretudo para as nações pertencentes à Igreja nas quais a religião católica já está solidamente estabelecida. Nos países de missão, certamente não será possível pôr tudo isso em prática antes de haver crescido suficientemente o número dos cristãos, antes de se haverem construído igrejas espaçosas, antes de serem convenientemente frequentadas pelos filhos dos cristãos as escolas fundadas pela Igreja, e, finalmente, antes de haver lá um número de sacerdotes igual à necessidade. Todavia, vivamente exortamos os obreiros apostólicos que lidam nessas vastas extensões da vinha do Senhor, entre os graves cuidados do seu ofício, se dignarem de ocupar-se seriamente também dessa incumbência. É maravilhoso ver o quanto se deleitam com as melodias musicais os povos confiados aos cuidados dos missionários, e quão grande parte tem o canto nas cerimônias dedicadas ao culto dos ídolos. Improvidente seria, portanto, que esse eficaz subsídio para o apostolado fosse tido em pouca conta, ou completamente descurado, pelos arautos de Cristo verdadeiro Deus. Por isso, no desempenho do seu ministério, os mensageiros do evangelho nas regiões pagãs, deverão fomentar largamente este amor do canto religioso que é cultivado pelos homens confiados aos seus cuidados, de modo que, aos cânticos religiosos nacionais, não raro admirados até mesmo pelas nações civilizadas, esses povos contraponham análogos cânticos sacros cristãos, nos quais se exaltam as verdades da fé, a vida de nosso Senhor Jesus Cristo, da Beata Virgem e dos santos na língua e nas melodias peculiares dos mesmos povos.
34. Lembrem-se, outrossim, os missionários de que, desde os antigos tempos a Igreja católica, enviando os arautos do evangelho à regiões ainda não iluminadas pela luz da fé, juntamente com os ritos sagrados, quis que eles levassem também os cantos litúrgicos, entre os quais as melodias gregorianas, e isto no intuito de que, atraídos pela doçura do canto, os povos a chamar a fé fossem mais facilmente movidos a abraçar as verdades da religião cristã.
IV. RECOMENDAÇÕES AOS ORDINÁRIOS
35. Para que obtenha o desejado efeito tudo quanto, seguindo as pegadas dos nossos predecessores, nós nesta carta encíclica recomendamos ou prescrevemos, vós, ó veneráveis irmãos, com solícito empenho adotareis todas as disposições que vos impõe o alto encargo a vós confiado por Cristo e pela Igreja, e que, como resulta da experiência, com grande fruto são, em muitas igrejas do mundo cristão, postas em prática.
Os coros dos fiéis
36. Antes de tudo tende o cuidado de que na igreja catedral e, na medida em que as circunstâncias o permitirem, nas maiores igrejas da vossa jurisdição, haja uma distinta “Scholae cantorum”, que sirva aos outros de exemplo e de estímulo para cultivar e executar com diligência o cântico sacro. Onde, contudo, não se puderem ter as “Scholae cantorum” nem se puder reunir número conveniente de “Pueri cantores”, concede-se que “um grupo de homens e de mulheres ou meninas, em lugar a isso destinado e localizado fora do balaústre, possa cantar os textos litúrgicos na missa solene, contanto que os homens fiquem inteiramente separados das mulheres e meninas, e todo o inconveniente seja evitado, onerada nisso a consciência dos Ordinários”.(26)
Nos seminários e colégios religiosos
37. Com grande solicitude é de providenciar-se, para que todos os que nos seminários e nos institutos missionários religiosos se preparam para as sagradas ordens sejam retamente instruídos, segundo as diretrizes da Igreja, na música sacra e no conhecimento teórico e prático do canto gregoriano, por mestres experimentados em tais disciplinas, que estimem tradições, usos e obedeçam em tudo às normas preceptivas da Santa Sé.
38. E, se entre os alunos dos seminários e dos colégios religiosos houver algum dotado de particular tendência e paixão por essa arte, disso não deixem de vos informar os reitores dos seminários ou dos colégios, a fim de que possais oferecer a esse tal ensejo de cultivar melhor tais dotes, e possais enviá-lo ao Pontifício Instituto de música sacra nesta cidade, ou a algum outro ateneu do gênero, contanto que ele se distinga por bons costumes e virtudes, e com isso dê motivo a se esperar venha a ser um ótimo sacerdote.
Um perito em música sacra no seio
do conselho diocesano de arte sacra
39. Além disso, convirá providenciar, para que os ordinários e os superiores maiores dos institutos religiosos escolham alguém, de cujo auxílio se sirvam em coisa de tanta importância a que, entre outras tantas e tão graves ocupações, por força de circunstâncias eles não possam facilmente atender. Coisa ótima para esse fim é que no conselho diocesano de arte sacra haja alguém perito em música sacra e em canto, o qual possa habilmente vigiar na diocese em tal terreno e informar o ordinário de tudo o que se tem feito e se deva fazer, acolhendo-se e fazendo-se executar as prescrições e disposições dele. E, se em qualquer diocese existir alguma dessas associações que sabiamente têm sido fundadas para cultivar a música sacra, e que têm sido louvadas e recomendadas pelos sumos pontífices, na sua prudência poderá o ordinário ajudar-se dela para satisfazer as responsabilidades desse seu encargo.
Os pios sodalícios consagrados à música sacra
40. Os pios sodalícios, constituídos para a instrução do povo na música sacra ou para aprofundar a cultura desta última, os quais, com a difusão das ideias e com o exemplo, muito podem contribuir para dar incremento ao canto sacro, amparai-os, veneráveis irmãos, e promovei-os com o vosso favor, para que eles floresçam de vigorosa vida e obtenham ótimos mestres idôneos, e em toda a diocese diligentemente deem desenvolvimento à música sacra e ao amor e ao costume dos cânticos religiosos, com a devida obediência às leis da Igreja e às nossas prescrições.
CONCLUSÃO
41. Tudo isso, movido por uma solicitude toda paternal, quisemos tratar com certa amplitude; e nutrimos plena confiança de que vós, veneráveis irmãos, dedicareis todo o vosso cuidado pastoral a tal questão de interesse religioso muito importante para a celebração mais digna e mais esplêndida do culto divino. Aqueles, pois, que na Igreja, sob a vossa direção, têm em suas mãos a direção do que concerne a música, esperamos achem nesta nossa carta encíclica incitamento para promover com novo e apaixonado ardor e com generosidade operosamente hábil esse importante apostolado. Assim, conforme auguramos, sucederá que essa arte tão nobre, muito apreciada em todas as épocas pela Igreja, também nos nossos dias será cultivada de modo a ver-se reconduzida aos lídimos esplendores de santidade e de beleza, e conseguirá perfeição sempre mais alta, e com o seu contributo produzirá este feliz efeito: que, com fé mais firme, com esperança mais viva, com caridade mais ardente, os filhos da Igreja prestem nos templos a devida homenagem de louvores a Deus uno e trino, e que, mesmo fora dos edifícios sagrados, no seio das famílias e nas reuniões cristãs, verifique-se aquilo que S. Cipriano fazia objeto de uma famosa exortação a Donato: “Ressoe de salmos o sóbrio banquete: e, como tens memória tenaz e voz canora, assume esse ofício segundo o costume em moda: a pessoas a ti caríssimas ofereces maior nutrimento se da nossa parte houver uma audição espiritual, e se a doçura religiosa deleitar o nosso ouvido”.(27) 42. Enquanto isso, na expectativa dos resultados sempre mais ricos e felizes que esperamos tenham origem desta nossa exortação, em atestado do nosso paternal afeto e em penhor de dons celestes, com efusão de alma concedemos a bênção apostólica a vós, veneráveis irmãos, a quantos, tomados singular e coletivamente, pertençam ao rebanho a vós confiado, e em modo particular àqueles que, secundando os nossos votos, se preocupam de dar incremento à música sacra.
Dado em Roma, junto a São Pedro, no dia 25 de dezembro, festa do Natal de nosso Senhor Jesus Cristo, do ano de 1955, XVII do nosso pontificado.
PIO PP. XII
Notas
(1) Motu Proprio Entre as solicitudes do múnus pastoral: Acta Pii X, vol. I, p. 77.
(3) Epist.161, De origine animae hominis, l, 2; PL 33, 725. (6) Cf. 1Cr 23,5; 25,2-31. (7) Ef 5,18s; cf. Col 3,16. (9) Plínio, Epist. X, 96, 7. (10) Cf. Tertuliano, De anima, c. 9; PL 2, 701; e Apol. 39; PL 1, 540. (11) Conc. Trid., Sess. XXII: Decretum de obseruandis et vitandis in celebratione Missae. (12) Cf. Bento XIV, Carta enc. Annus qui; Opera omnia, (ed. Prati, Vol.17,1, p.16). (13) Cf. Carta apost., Bonum est confiteri Domino, (2 de agosto de 1828). Cf. Bullarium Romanum, ed. Prati, ed. Typ. Aldina, t. IX, p.139ss. (14) Cf. Acta Leonis XIII,14(1895), pp. 237-247; cf. AAS 27(1894), pp. 42-49. (15) Cf. Acta Pii X, vol. I, pp. 75-87; AAS 36(1903-04), pp. 329-339; 387-395. (16) Cf. AAS 21(1929), pp. 33ss. (17) Cf. AAS 39(1947), pp. 521-595. (18) S. Agostinho, Confess., 1. X, c. 33, PL 32, 799ss. (19) Acta Pii X, 1, p.78. (20) Carta ao Card. Respighi, Acta Pii X,1, pp. 68-74; v pp. 73ss; AAS 36(1903-04), pp. 325-329; 395-398; v. 398. (21) Pio XI, Const. apost. Divini cultus; AAS 21(1929}, pp. 33ss. (23) Conc. Trid., Sess. XXII, De sacrificio Missae, c. VIII. (24) Acta Pii X,1, p. 80. (25) AAS 39(1947), p. 590. (26) Decr. S.C. Rituum, nn. 3964; 4201; 4231. (27) S. Cipriano, Epist. ad Donatum (Epistola 1, n. XVI); PL 4, 227.